MORAL ESTRANHA

No capítulo Moral Estranha, Alan Kardec enfrenta a dificuldade de interpretar O Evangelho segundo Lucas (XIV: 25-27,33). Essa passagem do Evangelho apresenta uma aparente contradição entre a doutrina na qual Jesus ordena honrar pai e mãe (e a família em geral) e outra em que determina aos seus seguidores afastarem-se de suas famílias para serem seus discípulos: “Se alguém vem encontrar comigo e não odeia o seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, os seus irmãos e irmãs e até a própria vida, não consegue ser meu discípulo(…)”. 

A primeira observação a fazer sobre esta passagem é que o uso da palavra “odiar” – verbo miseo em grego, o idioma adotado no Novo Testamento – não tinha exclusivamente o mesmo sentido hoje atribuído a este termo. Na Antiguidade, ele remetia não apenas ao sentimento de ódio mas também a uma atitude concreta de afastamento. Esse trecho bíblico, então, parece sugerir aos seguidores de Jesus que devem se desprender dos laços e dos interesses imediatos e próximos, para alcançarem a virtude requerida pelo Cristianismo: amar a todos e a qualquer um de modo universal e incondicional. 

Nesse sentido, Jesus parece convidar seus discípulos a não destinar o amor e a caridade tão somente aos seus (família fundada em laços consanguíneos), mas a todos que cruzarem seus caminhos. O que conseguimos interpretar a partir disso é que, seguir os ensinamentos do Cristo exige abandono ou desapego de coisas e pessoas que nos são naturalmente próximas. Ser capaz de oferecer e conceder zelo, cuidado e amor a todo e qualquer indivíduo e não somente àqueles com os quais temos laços consanguíneos. Por isso, vemos o uso de expressões genéricas e universais do tipo “amar ao próximo” – sendo o próximo todo e qualquer ser humano, sobretudo, os necessitados, os desfavorecidos, os injustiçados e os que estão à margem da sociedade. 

O trecho onde Jesus diz que seus seguidores devem odiar até a própria vida para seguí-lo, poderia ser interpretado como referência à vida futura, na medida em que a virtude exigida pelo Cristianismo não está vinculada unicamente a interesses terrenos mas, sobretudo, ao desapego – imprescindível no aperfeiçoamento para a vida futura, para a vida celeste. A partir daí, conseguimos compreender que não devemos conduzir nossa vida centrados apenas em nosso círculo familiar. A família, embora seja uma base importantíssima da sociedade, não deve monopolizar a dispensa de nossos cuidados e amor, impedindo sua universalização. Isso deve ser assim pois, só através do desprendimento, seremos capazes de avançar em nosso progresso espiritual e moral, o qual só se constrói pelo alargamento das relações de amizade e fraternidade. 

Na sequência do cap. XXII, Kardec prossegue sua interpretação do Evangelho segundo Lucas (IX:59-60) afirmando que a passagem onde Jesus diz: “…deixai os mortos enterrar seus mortos” é reveladora da supremacia da vida futura sobre a vida terrena. Em outras palavras, podemos compreender que Cristo estava convencido da superioridade e importância do Espírito, sobre o corpo e a matéria. 

O último ponto abordado por Kardec neste capítulo, diz respeito à aparente contradição entre o preceito pacifista que embasa o Cristianismo, e as palavras de Lucas (XII, 49-53) e de Mateus (X, 34-36) : “Não julgueis que vim trazer paz à Terra; não vim trazer-lhe paz, mas espada”(…) “Vós cuidais que eu vim trazer paz à Terra? Não, vos digo eu, mas separação”. 

Kardec, contudo, nos propõe interpretar tais passagens como sinal de que Cristo era sabedor que sua doutrina iria causar enorme desconforto, ao propor idéias inovadoras que ameaçavam à ordem e cultura preestabelecidas. Nesse sentido, Cristo prevê resistência e perseguição contra os preceitos que pregava. A resistência e a perseguição contra os ideais cristãos são concebidos como etapa necessária ao desenvolvimento e sobrevivência das palavras de Cristo ao longo do tempo. São capazes de nos fazer compreender porque a Humanidade foi capaz de derramar tanto sangue em nome da fé. Assim, Jesus preconiza que a etapa de superação destes conflitos virá através da pacificação, da fraternidade universal e da caridade.

ANDREA DOS SANTOS

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